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Caso Maya Kowalski: Como o Poder Judiciário replica o machismo estrutural em suas decisões

Erros paternos são perdoados, enquanto mães são condenadas até mesmo quando não erram

Marília Golfieri Angella
Por Marília Golfieri Angella
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Caso Maya Kowalski: Como o Poder Judiciário replica o machismo estrutural em suas decisões
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Recentemente vi um documentário no streaming da Netflix chamado “O Mistério de Maya” e fiquei muito tocada. Talvez pela prática na advocacia familiarista, com ênfase em Infância e Juventude, nos deparamos com situações semelhantes ao caso narrado e daí surgiu a ideia de escrever esse artigo para nossa coluna mensal no Araraquara News. Quem nos acompanha aqui no jornal já deve ter percebido que, por vezes, há alguma correlação entre documentários, séries e outros eventos com a vida real e acredito que essa análise seja importante para muitas famílias que se encontram em situações semelhantes e não sabem como agir.

Inicialmente, importante dizer ao leitor e à leitora que este artigo faz uma análise pessoal de processos constantemente apresentados ao Poder Judiciário, aqui tratados de forma não individualizada e sob uma perspectiva crítica de gênero, inclusive utilizando-se como referência um relacionamento heteroafetivo dada a existência da dicotomia mãe vs. pai dentro dos processos de família. Então, fazendo essa explicação, já peço de antemão que não se sinta ofendido, você, homem e/ou pai que compreende suas responsabilidades parentais e tenta desconstruir estereótipos sociais, reconhecendo privilégios e mudando a perspectiva da sociedade em busca de direitos mais igualitários. Igualmente, o texto pode conter algum spoiler a respeito do documentário citado, embora valha a pena assistir ainda que você leia esta coluna até o fim.

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A própria sinopse de “O Mistério de Maya” aponta que se trata de um casal que, acusado de abuso infantil, passa a enfrentar as autoridades da Flórida-EUA para recuperar a guarda da filha doente. Maya, 10 anos, era portadora de uma doença rara e ao dar entrada em um hospital durante uma crise de dor, a equipe médica e social do Hospital levantou a suspeita de que os pais praticavam uma modalidade de abuso infantil consistente em inventar ou causar doenças nos filhos, mais conhecida como Síndrome de Münchausen, algo não tão comum aqui no dia a dia das Varas de Família e Infância e Juventude aqui no Brasil. No entanto, há algumas semelhanças a serem abordadas a partir de diversos casos corriqueiros em nosso país, especialmente sob a ótica de gênero.

Assim como na vida real, no documentário o principal alvo da suspeita é a mãe. Em um determinado momento, o sistema de proteção começa a se voltar contra Beata, mãe de Maya, inclusive chegando a colocar o marido como opositor à esposa, situação que causou um conflito no relacionamento de ambos, também pais de uma outra criança.

Maya foi afastada do convívio familiar, mantida no Hospital sob custódia do Estado para tratamento e os pais foram impedidos até mesmo de visitá-la durante o período de internação. Em determinado momento, a criança passou a receber apenas visitas paternas por autorização do Juiz, mas a mãe foi proibida de ter acesso à filha, embora ela fosse a principal referência de cuidado e afeto de Maya. Os contatos se davam apenas raras vezes por telefone, sempre na presença da assistente social que acompanhava o caso e Beata era frequentemente interrompida em seus contatos.

Beata passou a ser perseguida pelo sistema e, mesmo com inúmeras tentativas de se explicar perante o Poder Judiciário, apresentando provas documentais, pareceres médicos e outros documentos a respeito da condição médica de sua filha, ela continuava sob suspeita. O final é trágico, pois ao ver a filha sofrendo com o afastamento familiar e uma internação hospitalar solitária, Beata comete suicídio por acreditar que somente assim a filha voltaria para casa. E foi justamente o que ocorreu.

Assim como Beata, muitas mães são apontadas como principal alvo de suspeitas nos processos em que há abuso de alguma violação de direito dos filhos, tendo suas falas contestadas perante o Poder Judiciário e suas posições diminuídas. É como se a posição materna, em determinados casos, fosse desfavorecida dentro do processo e aqui entra a crítica exposta no título deste artigo: o Judiciário (e o sistema de modo geral) aceita o erro paterno, mas quando a mãe erra, o julgamento – social e jurídico – é implacável.

O pai que não paga pensão alimentícia por anos, que omite patrimônio para pagar menos do que deveria, o pai que pega só a cada quinze dias (ou nem isso, quando aparece algum “compromisso de última hora”), o pai que não entende quando a mãe reclama da sobrecarga na organização da rotina da criança, o que agride, verbal, emocional e fisicamente, o que é ausente do lar sob a justificativa do excesso de trabalho, o que não sabe o nome da pediatra do filho, da professora, da cuidadora ou do melhor amigo da escola, o pai que não tem conhecimento se o esquema vacinal da criança está completo, que não sabe o que o filho gosta de comer, o tamanho do pé, o horário de dormir, as notas da escola, entre tantas outras situações. Esse pai o Judiciário aceita e a sociedade também, pois ninguém nem se choca de receber uma informação dessa em uma conversa no balcão da padaria logo pela manhã.

No Poder Judiciário, a fixação de visitas quinzenais paternas e o pagamento de pensão alimentícia em 30% do salário-mínimo, acontece sem qualquer juízo crítico, sem medo de o juiz errar ou ser injusto, com o aval muitas vezes do próprio Ministério Público. Logo, o modelo de pai que encontra uma defesa fácil durante o litígio judicial é o que pega o filho na casa da mãe duas vezes no mês e não paga nem metade dos custos da criança, porque 30% do salário-mínimo não cobre a perua da escola, o lazer, a roupa, a moradia, o material da escola que precisa complementar, e nem mesmo o tênis para o pé que cresceu, pois o valor mal cobre a alimentação mensal.

A mãe, pelo contrário, é constantemente julgada e se aceitar as mesmas condições dadas aos pais, como citado acima, este julgamento terá outro peso. A mãe, leitores e leitoras, não pode errar uma única vez. Não pode exaltar-se diante da sobrecarga, não pode estar cansada ao chegar do trabalho, não pode desejar sair sem o filho para se divertir um pouco e nem focar na carreira sob pena de ser acusada de abandono, não pode se negar a dar ao filho quase 100% de seu salário, porque as necessidades da criança são certamente superiores a 30% da sua renda. Se o pai não busca de última hora para a visita, é a mãe que precisa se virar, seja para pegar na escola, seja para cancelar outro compromisso pessoal assumido.

Se a mãe erra uma única vez, não lhe é concedida a oportunidade de pedir desculpas e nem de ser desculpada. Ela é colocada no banco dos Réus, sofre processo criminal infundado aberto pelo pai ausente, perde o direito de ter a guarda ou de ter um regime de convivência digno com o filho e rapidamente é taxada de alienadora, agressora, negligente, omissa e, em muitas vezes, é ela quem continua a tentar resolver as questões essenciais do filho à distância, como perguntar se está tudo bem, se foi dada a vacina, a dose de reforço do Covid, a preocupação da gripe no inverno, se tem agasalho na mochila da escola, se a tarefa foi feita e por aí vai.

Ressalta-se, novamente, que o recorte aqui proposto trata da dicotomia pai vs. mãe, principalmente em processos judiciais litigiosos julgados pelas Varas de Família a respeito da guarda, do regime de convivência e da pensão alimentícia, mas o mesmo recorte poderia ser proposto em outras ações judiciais, como nas ações em que se discutem as medidas de proteção do ECA.

Na Justiça, o CNJ editou um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em 2021 voltado ao enfrentamento da violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário. A utilização deste Protocolo passou a ser obrigatória a partir de março desde ano de 2023, mas a sua aplicação na prática ainda deixa a desejar. Não há fiscalização e nem mesmo um esforço dos atores do Sistema de Justiça para quebrar padrões tão enraizados no Poder Judiciário em razão da cultura machista presente na sociedade. Assim, a mãe que hoje existe nas Varas de Família não tem o direito de errar e nem mesmo de esquivar-se de suas “obrigações maternas”, vinculadas muitas vezes ao cuidado.

Cabe-nos, na prática da advocacia familiarista, seguir lutando para que o Protocolo de Gênero do CNJ seja aplicado, que as mães sejam ouvidas em pé de igualdade com o pai, que seja exigida a maior responsabilização e participação paterna nos casos em que o interesse da criança a justifique, que as relações familiares passem a ser analisadas pela ótica da igualdade, inclusive para quer as decisões judiciais não repliquem comportamentos sexistas existentes na família brasileira. Precisamos brecar a naturalidade com que a sobrecarga materna é tratada e a moralidade inerente ao machismo estrutural que encontra eco nos processos.

O diálogo mediado por um terceiro capacitado, como também permite a atual legislação, pode ser o caminho, vez que o próprio CNJ levantou que há um aumento de mais de 330% de alegações de alienação parental nos processos litigiosos em contraposição aos consensuais. O Poder Judiciário, portanto, precisa abrir suas portas aos meios alternativos de solução de conflitos, compreendendo as relações familiares de modo profundo, crítico, isonômico e específico a cada caso e abrir seus braços à mãe real para acolhê-la e não para julgá-la, ainda que ela tenha errado, pois a mãe também tem o direito de errar.

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Marília Golfieri Angella

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