Em fevereiro de 2006, na cidade do Porto, em Portugal, um grupo de 14 meninos com idade entre 12 e 16 anos dedicou três dias seguidos para torturar e, por fim, matar uma moradora de rua transexual, cuja saúde debilitada impediu qualquer reação contra as investidas dos garotos. A vítima se chamava Gisberta Salce Júnior, uma brasileira que, entre as décadas de 1980 e 1990, abandonou seu país em decorrência do grande número de crimes cometidos contra travestis e transexuais. A história real de Gisberta, da qual o destino se empenhou em preparar um desfecho trágico, inspirou o escritor português Afonso Reis Cabral para escrever o livro “Pão de Açúcar”, lançado recentemente no Brasil pela editora HarperCollins.
Nascida em São Paulo, Gisberta cresceu enquanto o Brasil vivia sob a ditadura militar. A redemocratização do país não chegou a ser um alento para ela. Em 1987, a Polícia Civil de São Paulo criou uma operação de "caça às bruxas" para prender arbitrariamente travestis na capital paulista com a desculpa de combater a aids. A operação instou os cidadãos brasileiros a imitarem a polícia, e, a partir daí, começou uma perseguição em massa contra travestis e transexuais.
Com medo de ser vítima dessa fúria injusta, Gisberta embarcou para Europa. Seu primeiro destino foi a França, onde realizou tratamento hormonal e fez implante de silicone nos seios. Depois mudou-se para Porto, onde se enturmou na cena gay local e rapidamente ficou famosa por suas performances em diferentes bares e boates.
Não se sabe, no entanto, como se deu a derrocada da imigrante brasileira. As notícias que se tem alegam que, por falta de dinheiro, Gisberta recorreu à prostituição e acabou se contaminando pela aids. Regularmente tinha que mudar de prostíbulo porque as mulheres que viviam no local não aceitavam “um homem roubando” seus clientes.
Gisberta foi então migrando de prostíbulo em prostíbulo até não ter mais para onde ir. Sem dinheiro e sem casa, foi parar numa construção abandonada que, inicialmente, seria uma das filiais da rede de supermercados Pão de Açúcar, do brasileiro Abílio Diniz. O governo português, contudo, havia embargado a construção anos antes e Diniz acabou desistindo de seguir em frente, deixando na cidade um esqueleto de concreto e ferro.
Foi no subsolo desse esqueleto que Gisberta encontrou um lar. Montou ali uma barraquinha e vivia com sua saúde cada vez mais debilitada. Além da aids, ela havia sido acometida pela tuberculose e se viciou em heroína. Aos 45 anos, Gisberta tinha a fragilidade de um idoso.
Foi nessa época que os garotos do orfanato católico Oficina São José descobriram a brasileira. Dois meninos da instituição costumavam matar as aulas para pichar prédios abandonados. Ao entrarem no esqueleto do Pão de Açúcar, conheceram Gisberta.
Logo que voltaram para o orfanato, os dois meninos contaram para os colegas que haviam conhecido um “gajo com mamas” (no vocabulário brasileiro seria algo como “um cara com seios”). O anúncio foi suficiente para despertar a curiosidade dos outros garotos. Assim, a partir do dia seguinte todos eles, num total de 14 crianças e adolescentes, passaram a ir ao subsolo do Pão de Açúcar para ver Gisberta.
Não se contentaram em vê-la, contudo. A turba achou por bem bater em Gisberta com pedaços de paus e pedras. E assim foi feito por três dias. Os garotos iam ao Pão de Açúcar em horários diferentes para bater na brasileira.
No último dia, porém, encontraram apenas o corpo desfalecido de Gisberta. Com medo de deixarem o cadáver se decompor ali, os meninos decidiram atirar Gisberta num poço que havia no meio da construção.
Por remorso, talvez, um dos rapazes contou o ocorrido para uma professora do orfanato. Na perícia, o médico legista encontrou água no pulmão de Gisberta e concluiu que ela ainda estava viva quando foi atirada no poço. A Justiça, porém, inocentou os garotos pela morte da brasileira. De acordo com o juiz, os meninos foram responsáveis “somente” pelas agressões, e não pela morte, já que a causa do óbito foi o afogamento. A pena mais dura foi para o rapaz de 16 anos, condenado a um ano e um mês numa casa de correção para menores.
O relato acima sobre a vida de Gisberta não pode ser considerado pelo leitor como um spoiler do livro de Afonso Reis Cabral. O escritor português, que inclusive ganhou o Prêmio Saramago por “Pão de Açúcar”, valeu-se da licença poética para contar a história de Gisberta e seu assassinato sob a perspectiva de um dos garotos. E, assim, Afonso conseguiu lacerar toda a esperança que o leitor pode ter na humanidade.
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