José dos Reis Santos Filho [1]
Nesta segunda-feira, dia 15 de março, o Brasil completou, em pouco mais de quinze dias, uma média de 1.855 mortes por dia. A epidemia avança por todo território nacional em intensidade e velocidade que esgotam os escassos recursos disponíveis. Hospitais e cemitérios não dão conta da demanda exigida.
Na mesma segunda-feira, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas denunciou em nível planetário o que todos já sabemos há um ano: é do presidente Jair Bolsonaro a responsabilidade pela “tragédia humanitária” em que vive o país. Conforme divulgou este Araraquara News, não parece ter sido difícil ao organismo da ONU identificar o papel desempenhado por ele nesta crise: "desdém nas recomendações dos cientistas; semear descrédito em todas as medidas de proteção - como o uso de máscaras e distanciamento social; promover o uso de drogas ineficazes; paralisar a capacidade de coordenação da autoridade federal de Saúde; descartar a importância das vacinas”. Não bastasse, de forma reiterada, riu “dos temores e lágrimas” de milhares de famílias. “Frescura” e “mimimi” foram expressões já usadas para referir-se à dor dos brasileiros."
Não obstante esse quadro, o final de semana foi palco de manifestações de grupos em apoio ao presidente. Na contramão de orientações já respaldadas por médicos, pesquisadores e gestores públicos de diversos países, manifestaram, entre outras questões, recusa ao isolamento social mais rígido. Nas palavras de uma das entidades de classe que se manifestou de forma mais racional em rede social, “os empresários de todos os portes, os comerciantes, os industriais, os prestadores de serviços, os empreendedores individuais e os autônomos precisam trabalhar”.
Em tese, é uma percepção que pode ser colocada de forma quase que universal: todos queremos voltar à vida normal. A dificuldade não aceita é que estamos frente a uma epidemia. Não estamos lidando com uma doença que afeta apenas indivíduos, sem risco de contaminação em seu entorno. No rigor do termo, como explicita a Organização Mundial da Saúde, ela corresponde à propagação de uma enfermidade em um grande número de pessoas, sem que haja imunização adequada para detê-la.
Ao considerarmos o potencial de contaminação de um vírus como o novo corona e suas atuais variantes, somos obrigados a reconhecer a importância do Estado em seu enfrentamento. Procrastina o gestor público que não efetiva o direito à saúde mediante políticas públicas e ações específicas que visem a interrupção do surto epidêmico e a redução da morbidade. Torna-se dever seu a adoção de medidas de saúde pública que incidam de forma direta na defesa da inviolabilidade do direito à vida. E é evidente que isso implica em custos e eles afetam de forma drástica nossas vidas privadas.
Nossa autonomia certamente é limitada quando somos obrigados ao uso da máscara, do álcool e do distanciamento social. Mais a mais, não restam dúvidas quanto ao fato de que a liberdade de locomoção, de agrupamento e, mesmo de formas de sociabilidade como a sala de aula ou o culto religioso serão afetados. São constrangimentos considerados necessários e com ampla base legal. Não por acaso, os juizados que já enfrentaram processos nesse âmbito têm afirmado que no “conflito entre o direito individual e o coletivo da sociedade à saúde pública, deve sobrepor-se o dever do Estado frente a proteção da população”. É um quadro em que se torna compreensível que “o direto fundamental de ir e vir deva ser relativizado”.
A demanda por lockdown supõe a inexistência de um direito a contaminar. Por isso, inclui, medidas restritivas, temporárias, destinadas a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. Além disso, convenhamos, e esse é um aspecto fundamental, são iniciativas que, exercidas em seu rigor, tornam-se condições de possibilidade para o exercício efetivo da liberdade. Como diz Eduardo Ferreira, são “medidas necessárias para a preservação sustentável e de longo prazo da liberdade fática ou real”. O resto, é politização da miséria.
[1] Cientista social.
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