José dos Reis Santos Filho [1]
A imagem traz de volta à memória a morte de centenas de milhares de seres humanos, sobretudo judeus, mas também poloneses, ciganos e outras minorias étnicas durante o regime nazista na Alemanha. Presente em uma carta/manifesto assinada por religiosos, intelectuais, artistas, centrais sindicais e outras instituições, a lembrança abriga a percepção de que não precisamos de recintos hermeticamente fechados e planejados para o assassinato em massa de brasileiros e brasileiras.
Ela sugere também, além disso, que não é necessário o desenvolvimento de uma logística complexa que conduza coercitiva e ordeiramente as pessoas ao cubículo onde inalarão um gás mortífero. O governo do capitão descobriu que, como o gás, o vírus que nos assola também é transmissível por inalação. E o que precisou realizar para provocar efeito similar ao da “solução final” instituída por Hitler foi simplesmente usar todos os poderes que lhe são atribuídos para não fazer nada que impedisse a propagação do Covid-19. A linha de tempo na qual “uma estratégia institucional de propagação do coronavírus” foi estabelecida e implantada já foi devidamente documentada pelo CEPEDISA/FSP/USP em parceria com a CONECTAS DIREITOS HUMANOS.
É óbvio que o capitão não esteve e permanece não estando sozinho. Contou e conta com a colaboração ativa ou passiva de uma constelação de outros atores sociais, econômicos e políticos. A ideia de que lidávamos com uma “gripezinha” não foi aceita apenas por sua base eleitoral e ideológica. Permanecem ativos, entre outros, parlamentares, agentes econômicos, lideranças religiosas, jornalistas, governadores e prefeitos. Não importa as motivações individuais ou de grupo, estão ali, omissos ou em militância efetiva a favor de uma prática genocida.
Na arena política, considerado um projeto de interrupção da contaminação, a ficção de lockdown implantada pelo governador Doria é tão ou mais problemática quanto a insistência da prefeita de Bauru em “deixar rolar” a lógica epidêmica, não obstante as vítimas que produz em sua cidade. Neste segundo caso, há uma atividade criminosa aberta e assumida. No primeiro, passa-se a impressão de que alguma coisa está sendo feita, ainda que a amplitude das “atividades essenciais” e sua restrição no tempo cotidiano mostrem que não há intenção de conter efetivamente o avanço do vírus, senão administrar sua velocidade de propagação.
São exemplos que sinalizam o espectro de forças político/administrativas que deixam suas digitais na tragédia vivida por nós. Se o capitão aparece no topo da máquina que alimenta tal situação, a diversidade de seus reprodutores, como vimos, é enorme. Isso obriga reconhecer as consequências das ações/omissões em que estão envolvidos. E, em nível que perpassa todos os níveis da federação, elas são óbvias: a) há um colapso (intencional) no sistema de saúde; b) há um atraso substantivo na implementação de um programa de vacinação; c) há negação ou displicência em relação a medidas básicas de prevenção; d) há uma persistência na divulgação de falsas saídas para a epidemia, algo sustentado de forma selvagem e criminosa, inclusive, por médicos que ainda acreditam que estrume de cavalo cura feridas. Em um contexto mais geral, agrava-se a crise social e econômica para a qual a pandemia contribui, mas não é, em hipótese alguma, fator instituinte. No conjunto, uma população indefesa e em condições de vida cada vez mais sujeitas à vulnerabilidade e ao risco.
É verdade que os últimos dias sinalizam a possibilidade de uma mudança de cenário. O Congresso, com a velocidade de uma tartaruga atolada no asfalto, descobre o papel que pode exercer. Os governadores, não todos, é claro, acordam preguiçosamente para a tragédia que já bate às suas portas há tempos. Os prefeitos, pelo menos muitos deles, se dão conta que é na ponta do pacto federativo que a dinâmica da morte cobra toda sua visibilidade e mexem-se de forma ziguezagueante, mas minimamente produtiva. É suficiente para evitar o agravamento do quadro? Aqui, a velha frase ainda manifesta sua validade: ainda vai piorar muito para melhorar. Os papéis protagonistas alternativos à figura do capitão já deveriam estar em ação há muitos meses. Não estiveram e ainda não imergiram em planos e projetos à altura dos acontecimentos.
Em um país como o Brasil, é difícil se falar em esperança. Mas, rendendo fé ao mito de Pandora e indo à reboque do dito popular, ela parece ser a última que morre. Em nosso caso, no entanto, ela só pode ser alimentada pela persistência na denúncia, nas manifestações de resistência e na revolta. E isso significa agir diariamente reivindicando um não ao genocídio, a seu responsável e a seus cúmplices.
Segunda-feira, 08/03/20202.
[1] Cientista social.
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