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Quarta-feira, 19 de Marco de 2025

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A Copinha na perspectiva do Direito Infanto-Juvenil

A realidade das categorias de base parece estar distante do que a lei exige. Como, então, proteger crianças e adolescentes?

Marília Golfieri Angella
Por Marília Golfieri Angella
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A Copinha na perspectiva do Direito Infanto-Juvenil
Partida entre Palmeiras e Santos, válida pela final da Copa São Paulo de Futebol Júnior, no Allianz Parque, em São Paulo-SP. (Foto: Fabio Menotti)
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Terminou a Copa São Paulo de Futebol Júnior, a famosa “Copinha”, competição que acontece anualmente em janeiro. O campeonato é disputado por jogadores de até 20 anos de idade e a edição de 2022 contou com 128 equipes de todo o Brasil. Em razão do evento, voltou a circular nas redes sociais um vídeo de entrevista concedida pelo treinador de futebol Fernando Diniz, em 2019, na qual ele ressalta a deficiência de formação humana e cívica do jogador brasileiro, com enfoque para o trabalho desenvolvido nas categorias de base. De acordo com as percepções do entrevistado, o jogador brasileiro, que comumente vem de contextos de vulnerabilidade econômica e social, tem dificuldade de ser disciplinado taticamente. Além do campo-e-bola, o treinador aponta que, de seu ponto de vista, os clubes deveriam investir em estruturas de formação pessoal – e não só tática e física – das crianças e adolescentes que estão sob seus cuidados, uma vez que eles chegam aos clubes em média com 13, 14 anos. Diniz tem razão.

De acordo com o artigo 227 da Constituição Federal, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No Estatuto da Criança e do Adolescente está previsto que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (ECA, artigo 53). Veja: de acordo com a lei, crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos, possuem prioridade absoluta no respeito a seus direitos fundamentais tendo em vista sua peculiar etapa de desenvolvimento, sendo responsáveis não só a Família e o Estado, mas também a Sociedade de um modo geral.

Contudo, a realidade das categorias de base parece estar distante do que a lei exige.

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Em regra, meninos de pouca idade – há campeonatos sub-9 disputados por aqui com contratos de iniciação esportiva – ingressam nos clubes de futebol do país todo e passam a ter rotinas de treinos que, embora permitam a frequência escolar, que é obrigatória, indubitavelmente tiram o foco da vivência e aprendizagem curricular para reforçar a dedicação no sonho de se tornar futebolista profissional. Afora a questão educacional, aspectos psicológicos vinculados à pressão, competitividade e falta de lazer, podem também ter grande impacto na formação destas crianças, as quais estão em pleno desenvolvimento e precisam ser protegidas como tal de acordo com a nossa legislação.

Os Clubes Formadores, que são menos de 40 registrados na CBF, têm a obrigatoriedade de “monitoramento e fiscalização das condições de alimentação, higiene, segurança e salubridade de todas as instalações e seu centro de treinamento”, com pequenas imposições para cumprimento da grade escolar. Apesar disso, os critérios para a certificação são rasos e não consideram outros direitos fundamentais previstos no ECA, como lazer, cultura e convivência familiar e comunitária, por exemplo, bem como apresentam, por vezes, cláusulas potencialmente abusivas nos próprios Contratos de Formação.

As diretrizes impostas pela CBF, em suma, respeitam a educação mínima obrigatória e a saúde do jogador amador em formação, a qual é essencial para o bom desempenho da própria função que dele se espera, o que traz lucro ao clube. A título exemplificativo, note-se que o clube formador não possui a obrigação de custear o deslocamento do atleta e/ou seus familiares, salvo ao final da temporada oficial, nem mesmo de garantir espaços de lazer e atividades fora do centro de treinamento em horários livres, principalmente para os residentes.

Na mesma linha, vai o recente programa da Prefeitura de São Paulo chamado Bolsa Atleta, lançado para este ano de 2022, com foco em atletas de 14 a 21 anos. A bolsa de R$ 400,00 a R$ 800,00 varia de acordo com a idade e o único critério é estar federado e matriculado em Instituição de Ensino correspondente com a idade.

A tarefa de ser um jogador profissional não é fácil. Ao redor do mundo, apenas aproximadamente 1,5% dos que ingressam nas categorias de base alcançarão este objetivo, proporção que se repete no nosso país. Aqui, ainda, apenas 20% destes poucos que chegam ao profissionalismo ganharão mais do que um salário mínimo.

Em artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Antônio Jorge Gonçalves Soares afirma que a formação de um jogador profissional pode se iniciar aos 12 anos e demandar entre 5.000 e 6.000 horas de treinamentos voltados para o preparo físico e as técnicas corporais e psicológicas do jogo. Isso quer dizer que até os 18 anos de idade, esse indivíduo terá treinado entre três e quatro horas por dia. Como ainda esperar que ele faça outras atividades extracurriculares importantes para seu desenvolvimento pleno e saudável, estude para as provas, se divirta, tenha tempo ocioso e criativo em contato com a natureza e na comunidade, como parques etc., e interaja com outras pessoas para além daquelas presentes no clube formador ou mesmo com seus familiares de forma adequada?

Se de um lado exige-se demais da atleta infanto-juvenil em termos de treinamento esportivo, pouco se entrega a ele em termos cidadania. Estes jovens são afastados do convívio familiar e da comunidade, têm pouco ou nenhum estímulo para apresentar bom desempenho escolar meramente protocolar e crescem sem referências adultas, de parentalidade positiva, segura e ativa, que de fato tenham por eles cuidados especiais.

Em um extremo, basta puxar na memória a tragédia no Ninho do Urubu, quando morreram dez jovens entre 14 e 16 anos da base do Clube de Regatas Flamengo. Até hoje, três anos depois, os culpados ainda seguem sem punição alguma. Dos sobreviventes, a minoria permaneceu no Clube e alguns não tiveram contratos renovados, estando sem jogar.

O resultado dessa falta de estruturação adequada das categorias de base é que temos jogadores que atingem sua maturidade profissional como atletas com uma defasagem relevante nas práticas éticas e sociais. Qualquer pessoa que pare para assistir uma partida de futebol nacional certamente se deparará com uma cena de simulação, conduta que gera reflexão a respeito do tema aqui levantado: em qual outro trabalho seria admissível que os profissionais simulassem situações inexistentes uns contra os outros para tirar vantagens?

Há inúmeros exemplos de desrespeito ao treinador, ao árbitro ou a qualquer outro que esteja em campo para estabelecer limites. Fora das quatro linhas, cansamo-nos de ver, durante a pandemia da COVID-19, jogadores furando a quarentena para frequentar festas clandestinas, além de notícias recorrentes de jogadores envolvidos em casos de violência contra mulheres, até mesmo no âmbito doméstico contra namoradas e esposas.

É claro que não se pode generalizar tais comportamentos, mas é preciso que o Futebol, enquanto prática desportiva importante em nossa sociedade, envolvendo Clubes, técnicos, diretorias, imprensa, entre outros, e os próprios cidadãos e espectadores, passem a olhar para as categorias de base sob a ótica da proteção infanto-juvenil e do cuidado com direitos de jovens jogadores, sujeitos de direito ainda em fase de formação.

Voltando à Copa São Paulo de Futebol Júnior, se considerarmos que cada um dos clubes tem 20 atletas inscritos (número muito modesto, registre-se), teríamos ao menos 2.560 jogadores e, aplicando-se a proporção de que apenas 1,5% se tornará profissional, temos apenas 39 atletas com futuro no esporte. E os outros 2.521 que serão devolvidos para a sociedade sem uma formação adequada? Pé direito, pé esquerdo e depois, lá no final da caminhada, uns poucos selecionados seguirão seus sonhos e todos os outros voltam para suas famílias, diferentes de como saíram, mais velhos, tendo que encarar um mundo que não é o do futebol e para o qual nunca foram preparados.

Este artigo busca instigar o debate sobre o tema e a assumirmos a corresponsabilidade, legal e moral, como visto, de cobrar dos nossos Clubes do coração um projeto realmente eficiente voltado para a formação destes atletas da base como cidadãos, mais preparados não só para o esporte, mas para a prática cívica em geral, formando, assim, uma sociedade melhor para todos e todas.

O foco precisa estar para além do chutar, correr, cabecear, cruzar, dominar, mas também no respeito a todos os demais direitos fundamentais destes jovens atletas. Quantos cidadãos precisamos perder para conquistar uma taça?

Colaborou com este artigo Rodrigo Golfieri Angella.

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Marília Golfieri Angella

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Marília Golfieri Angella

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