Talvez o tema escravidão moderna esteja mais em pauta ultimamente, quiçá em decorrência da maior informação garantida à população a respeito do tema ou mesmo da facilidade conferida pelos meios eletrônicos de gravar e fazer denúncias. Está aí o podcast da Folha “A Mulher da Casa Abandonada”, apresentado pelo jornalista Chico Felitti, para escancarar que a escravidão moderna está presente até mesmo em muitos lares brasileiros, travestida de bondade, de cuidado e de falsos afetos.
Mas diferente dos diversos casos de empregadas domésticas escravizadas, aqui rememorando a figura de Madalena Giordano para representar muitas outras histórias, o caso de escravidão moderna que tomou a mídia nos últimos dias evidenciou que a negligência do Estado brasileiro supera as quatro paredes dos lares e toma proporções grandiosas, as quais, invariavelmente, batem à nossa porta.
Aurora, Garibaldi e Salton são marcas premiadas encontradas constantemente nas mesas dos brasileiros, inclusive com prêmios internacionais nos seus rótulos, e a responsabilização destas grandes vinícolas pela frente do direito do trabalho nos parece clara – ainda que as notas de repúdio digam o contrário, escondidas sob o manto da terceirização, como alertado na reportagem de João Filho publicada pelo jornal Intercept.
Não há dúvida de que os mais de 200 trabalhadores estavam trabalhando em condições degradantes análogas à escravidão terão seus direitos garantidos e reconhecidos, mas quero convidar você, leitor e leitora da nossa coluna no Araraquara News, a pensar em como isso nos afeta enquanto cidadãos dentro de uma perspectiva social e da responsabilização do Governo brasileiro, vez que essas denúncias não são raridade, mas sim uma realidade muito mais cruel e presente do que imaginamos.
Um exemplo para começar: você sabia que o Brasil possui mais de uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a respeito de trabalho escravo? Vamos a um dos exemplos, que se assemelha ao caso das vinícolas do Rio Grande do Sul.
Em 1998, a denúncia dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde chegou à CIDH e, quase 18 anos depois, o Estado brasileiro foi condenado pela inércia e ineficiência no combate ao uso de trabalho escravo nesta fazenda localizada no Pará. Veja-se que a não adoção de medidas suficientes e eficazes pelo Brasil para garantir os direitos dos trabalhadores foi uma das constatações do relatório que levou à condenação, após uma série de recomendações feitas para coibir o uso de mão de obra escrava no país.
“No presente caso, a situação de especial vulnerabilidade pela posição de pobreza em que se encontravam os 85 trabalhadores, fez com que fossem vítimas de tráfico de pessoas devido ao modus operandi existente na região do Estado do Pará; e, também, considerando outras características similares, deixava-os propensos a aceitar, mediante enganos, ofertas de trabalho na Fazenda Brasil Verde, que se materializaram em formas de trabalho escravo. Esta situação particular não foi um ato isolado, mas, como foi explicitado na Sentença, possui antecedentes históricos e se perpetuou em relação a setores específicos da população e determinadas regiões geográficas após 1995, data na qual o Brasil reconheceu expressamente a existência de ‘trabalho escravo’ no país. A partir disso, foi analisada conjuntamente a posição de pobreza como o fator estrutural determinante para a perpetuação histórica do trabalho escravo no Brasil.” (Trecho do relatório apresentado com a sentença da CIDH)
Lá no Rio Grande do Sul, a história se repete, vez que os trabalhadores vieram da Bahia com a promessa de salários dignos, inclusive com oferta de passagens de ida e volta à cidade natal para convívio familiar, deixando-os propensos a, de fato, aceitar a falsa oferta. Ao chegarem lá, afora as degradantes condições de trabalho e da violência física e psicológica sofrida, os trabalhadores não tinham condição financeira de regressar à cidade natal e até mesmo tinham que pagar preços abusivos para comer. A situação de vulnerabilidade e a pobreza marcam, pois, este novo caso de escravidão moderna, não resolvendo o Brasil o fator estrutural indicado pela CIDH para a perpetuação do trabalho escravo em território nacional.
Nesse sentido, observamos que a sentença da CIDH determinou que o Estado brasileiro deveria implementar medidas para prevenir a reincidência do crime, o que, sabemos, falhou, na medida em que continuamos vendo notícias como estas nos jornais recorrentemente.
Como cidadãos, há algumas ações que nos cabem e que podem contribuir significativamente para o combate ao trabalho escravo e, nesta coluna, vamos focar em três delas. A primeira é na esfera legislativa, na medida em que podemos votar em representantes políticos que tenham como pauta de relevância o combate ao trabalho escravo e que busquem a melhoria da legislação protetiva aos trabalhadores, intensificando a fiscalização das condições laborais.
A segunda é referente ao nosso posicionamento como consumidores, seja cobrando posturas efetivas, práticas e reais na busca de melhorias que não apenas meras notas de repúdio e promessas de mudanças, seja também buscando por marcas diversas daquelas que pairam denúncias robustas de trabalho escravo ou mesmo marcas já condenadas. E aqui uma dica seria buscar produtos de pequenos produtores, marcas locais sobre as quais tenhamos conhecimento e de negócios de impacto socioambiental, que estejam atentas à proteção do meio ambiente e de todas as pessoas na cadeia de produção.
A terceira possibilidade como cidadãos seria mais complexa, sugerindo aos leitores e leitoras que façamos uma revisão crítica da nossa postura social diante das injustiças que presenciamos ou que, no silêncio do privilégio, fingimos não existir. Sem qualquer pré-julgamento e nos colocando de maneira isenta, podemos nos questionar sobre as condições de vida e de trabalho de pessoas próximas a nós, inclusive revendo contratos de trabalho a que temos controle, pagando direitos trabalhistas de forma digna.
Por fim, à luz do caso do Rio Grande do Sul, ainda que ocupemos a posição de empregado, podemos nos fortalecer pela força do coletivo e olhar para os processos internos das empresas que estamos vinculados, tais como questionar-nos sobre as condições a que eventuais terceirizados estão submetidos dentro da cadeia de produção que também somos parte, de maneira empática, tentando enxergar a pessoa para além do crachá.
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