ARARAQUARA (SP) - Os cabelos brancos e as marcas do tempo na pele são só reflexos de quem faz lembrar uma clássica avó. Aliás, ela é bisavó, mas tem uma rotina muito diferente da maioria das mulheres de 74 anos. Longe do sossego da aposentadoria, Bernadete Mendes passa seus dias ao volante pelas ruas de Araraquara, onde se tornou uma figura conhecida e querida.
Como motorista de aplicativo, ela já acumulou a impressionante marca de mais de 16 mil corridas. A reação dos clientes ao verem quem está na direção é de admiração e, acima de tudo, segurança. "Gosto do serviço dela, sim. Ela é bem calma, bem tranquila, para viajar é maravilhosa", relata Laura dos Anjos, 53, sua passageira frequente.
A jornada de dona Bernadete começou longe, em Portugal. Veio para o Brasil aos seis anos e construiu sua vida trabalhando com costura e corretagem de imóveis. A decisão de se tornar motorista, há quatro anos e meio, surgiu inicialmente para ganhar um dinheiro extra com o carro parado. Contudo, a motivação financeira logo ficou em segundo plano.
O trabalho se tornou uma poderosa válvula de escape contra o tédio e a inatividade. "Nossa, eu fico frustrada, não gosto de sair só para passear um pouco", afirma Bernadete Mendes, que ostenta nota máxima no aplicativo. E quem pensa que a idade a torna frágil, se engana. Ela garante que soube lidar com os raros problemas que teve. "Quando não tá bem, eu faço ficar, principalmente porque preciso estar com a mente sã para transmitir segurança e tranquilidade a quem entra no meu carro", diz, com firmeza.
Hoje, dona Bernadete sobrevive muito bem da vida de corridas por aplicativo. “Graças ao meu bom Deus, que consegui recentemente reformar a minha casa e a minha cozinha que tanto desejava. Posso dizer que hoje tenho uma cozinha de revista e, graças a Deus, foi fruto da minha vida enquanto motorista”, compartilha.
E com tamanha carisma e dedicação, no aplicativo, ela foi classificada como motorista 'diamante' é só elogios por parte dos passageiros. "Eu recebo vários elogios, e quando vou ler, fico emocionada", relatou.
Vitalidade no transporte público da cidade
Não são nem três da manhã quando Severino José da Silva, 70 anos, acorda. A rotina é implacável: primeiro, o café “da manhã”, tomado sem pressa; depois, uma caminhada de pouco mais de 100 metros de casa, no Jardim América, em Araraquara, até um supermercado onde espera a condução para a garagem da empresa. O sol ainda dorme, às quatro e dez, quando ele recebe os primeiros passageiros do dia, na linha sentido Centro. A rotina do cobrador mais velho da cidade, é quase a mesma há duas décadas, quando já aposentado começou a trabalhar em uma empresa de ônibus. Alguns detalhes, como o itinerário das viagens, mudaram, mas a tranquilidade e paciência, consideradas por ele como o segredo para fazer da profissão uma atividade agradável, continuam as mesmas.
Severino diz não se surpreender com o título de cobrador mais velho da empresa, apesar de nunca ter sido formalmente declarado como tal. A idade só é denunciada pelos cabelos brancos e longas histórias acumuladas em tantas décadas de vida.
“Ser cobrador foi a profissão mais tranquila que já tive”, revela. Para sobreviver, começou a ganhar dinheiro ainda criança, ajudando o pai na confecção de tijolos da família, em Paudalho, no Norte do Pernambuco, onde nasceu e viveu. Depois disso, trabalhou mais 27 anos em uma fábrica de cerâmica na região do ABC Paulista. “Passei muito tempo na fornalha, usando o braço, depois fui trabalhando na área administrativa, mas sempre com muita responsabilidade”, lembra.
Ele conta que o fluxo de passageiros e o caos do transporte municipal nunca o fizeram desanimar. “Tem muita agitação”, brinca. Hoje, para ele o segredo é não se estressar: “Se um rapaz subir no ônibus e não tiver dinheiro para pagar a passagem eu não posso arriscar minha vida e arrumar briga com ele”.
Três meses depois de perder a esposa, companheira de vida por mais de quatro décadas, passou a dividir a casa com um dos seis filhos e uma das 13 netas. O resto da família, composta por mais nove bisnetos, já não está mais sob as asas dele. Mais do que um complemento de renda, o trabalho para Severino é distração. Pretende ser cobrador até o dia que Deus deixar, conhecendo os passageiros que vem e vão de um bairro ao outro. “Meu nome é trabalho. Se eu ganho folga em um dia, acordo no mesmo horário que estou acostumado, saio para dar uma caminhada”, conta.
Ao volante, quem o acompanha é Geraldo dos Anjos, de 67 anos, o motorista da linha. Pouco mais novo que o colega, ele reconhece em Severino uma energia singular. "Seu Severino é um grande amigo. Sabemos que o mercado de trabalho duvida da nossa força, mas estamos aqui, mais fortes que muitos jovens, com a mente e o coração bons. No fim, é isso que importa", reflete Geraldo.
As trajetórias de dona Bernadete, Severino e Geraldo são inspiradoras. Elas provam que, independentemente dos percalços da vida, é possível encontrar um novo fôlego na maturidade, transformando o trabalho não apenas em uma fonte de sustento, mas também em um motor para a autoestima e um caminho para o futuro.
O Brasil diante de um crescimento populacional histórico
Nada mais justo e essencial que os idosos possam buscar uma vida com equilíbrio para garantir uma vida mais tranquila, com segurança e independência na terceira idade, entretanto, a falta de familiaridade com novas tecnologias e a menor educação financeira tornam a vida dos idosos mais vulnerável. Além disso, o valor da aposentadoria ou pensão, que se torna a principal fonte de renda, pode ser insuficiente para cobrir todas as despesas, especialmente aquelas relacionadas à saúde e o bem-estar.
Para o professor sociólogo da PUC Campinas, Alexandre Kalache, o país vive uma revolução da longevidade sem o devido preparo. "O envelhecimento populacional no Brasil ocorre de forma acelerada, sem que a sociedade e o Estado se preparem na mesma velocidade. A vulnerabilidade dos idosos, seja financeira ou digital, não é uma fatalidade, mas um sintoma da falta de políticas públicas integradas que promovam educação e proteção. A longevidade é uma conquista que precisa vir acompanhada de dignidade e autonomia, transformando o potencial da 'geração prateada' em um ativo para o país", analisa o especialista.
Essa mudança já se reflete na "identidade etária" do brasileiro. Se em 2000 a idade média da população era de 28,3 anos, hoje ela já alcança 35,5 anos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que, em menos de 50 anos, essa média chegue a 48,4 anos, com o país podendo ter 75,3 milhões de pessoas idosas em 2070, representando 37,8% da população total. No entanto, os números revelam apenas parte da história. Por trás das estatísticas, emerge uma geração que está redefinindo o que significa envelhecer, provando que a longevidade pode e deve ser sinônimo de vitalidade, equilíbrio e protagonismo.
Uma história 'construída nas alturas'
Com o céu por testemunha e a experiência como copiloto, José Ferreira, aos 65 anos, aguarda a aprovação de sua aposentadoria. Perto de pendurar o quepe (nome dado ao chapéu usado por pilotos), ele comanda com maestria um Phenom 300, uma das mais sofisticadas aeronaves da aviação executiva de voos fretados.
Semanalmente, as missões partem de aeroportos comerciais do interior paulista com destino à cidade de Goiânia (GO) e Uberlândia (MG), dependendo do contratante do frete. Essa modalidade de aviação exige do aposentado um equilíbrio entre não apenas a habilidade técnica, mas também uma grande capacidade de adaptação às diferentes operações. Para ele, a transição da aviação comercial para a executiva foi uma decisão consciente.
“O ritmo é diferente, o planejamento de cada voo é único. Na prática, você continua aplicando toda a experiência acumulada, mas com um nível de autonomia e flexibilidade que a aviação de linha aérea não permite”, comenta. “Hoje, com os meus 65 anos, é raro encontrar alguém da minha idade pilotando avião. São poucos, aliás. Não se trata de não querer parar, mas de continuar exercendo a profissão em um formato que ainda faz sentido para mim”, diz.
Com 20 mil horas de voo acumuladas, Ferreira poderia desfrutar de um merecido descanso, pois já terá completado os 25 anos de profissão, assim como prevê a Reforma da Previdência que estabelece o direito à aposentadoria especial. No entanto, a calmaria da aposentadoria não se alinha ainda aos planos de Ferreira com seu espírito inquieto.
“O convite para pilotar voos fretados surgiu como uma oportunidade de me manter ativo e financeiramente estável, já que tenho o sonho de concluir os estudos da minha filha que vai se formar em medicina em dezembro deste ano”, celebra.
A tranquilidade financeira, por sua vez, vem como uma consequência natural de uma vida de trabalho e planejamento. “Muitos me perguntam por que eu continuo voando. A verdade é que acredito que o céu ainda me chama. Lembro de quando ainda era menino, olhava pela janela do assento e via todo o céu. Mas nem imaginava que era nesse meio de transporte que eu encontraria um horizonte de possibilidades. Enquanto eu tiver saúde e essa paixão que me move, meu lugar será aqui, entre as nuvens”, conclui.
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