O termo “adoção tardia” passou a fazer parte do vocabulário popular, ainda que a pessoa que o escute faça uma interpretação literal destas duas palavrinhas: é a adoção que ocorre “depois”.
É preciso, assim, tecer uma crítica inicial, pois embora façamos uso da palavra “tardia” com apelo quiçá midiático, nunca é tarde para se adotar crianças e adolescentes, formando-se uma família através da adoção. Sempre é tempo para que o vínculo da filiação se fortaleça e gere frutos a partir do amor e do respeito. Vamos conceituar a ‘adoção tardia’, portanto, como a adoção de crianças maiores ou de crianças e adolescentes com difícil colocação, como as com deficiência ou em grupos de irmãos.
O termo também carrega uma série de preconceitos enraizados em nossa sociedade. Você já deve ter ouvido sobre uma famigerada ‘herança’ de traços de caráter, o peso de possíveis dificuldades cognitivas ou enfermidades ‘incuráveis’, assumindo a criança e o adolescente verdadeira sobrecarga, parecendo ser imutável essa personalidade (irrealmente) “já formada”. Esquecemos dos ditames da nossa Constituição Federal (Art. 227) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Art. 6º), que alçaram crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos em peculiar condição de desenvolvimento.
Talvez possamos, então, alterar o nosso campo de visão, passando a enxergar não só os medos e receios dos muitos pretendentes à adoção cadastrados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), mas também sob a ótica daquela criança e do adolescente que está acolhido, que pode estar sofrendo ante os sucessivos vínculos afetivos que foram quebrados ao longo da sua vida, do medo do desconhecido e de uma potencial nova rejeição, até mesmo porque, no Brasil, não contabilizamos estatísticas a respeito da taxa de devolução de crianças que retornam aos abrigos após tentativas frustradas de adoção, o que ocorre normalmente em adoções ditas tardias.
É, portanto, uma via de mão dupla em relação a medos e inseguranças por parte de pretendentes e crianças disponíveis para adoção, os quais precisam ser identificados, compreendidos e trabalhados pelo Sistema de Justiça e pela rede de proteção da infância, com cuidado e sem preconceito, e sobretudo com informação, amor, paciência e respeito.
Aqui, caro leitor do Araraquara News, vamos trazer algumas informações a respeito do tema com enfoque no campo do juridiquês.
É preciso explicar que na literatura sobre o tema, quando olhamos para textos anteriores a 2010, por exemplo, falava-se em adoção tardia quando adotava-se bebês acima de 2 anos. Contudo, o perfil na busca pela adoção está mudando gradativamente com o passar dos anos, e, hoje, quando falamos em ‘adoção tardia’ é natural pensarmos em crianças já a partir de 7 ou 8 anos. Estas, ainda que estatisticamente tenham a possibilidade de serem adotadas e colocadas em famílias por adoção, são menos procuradas pelos 32.901 pretendentes habilitados no Sistema de Justiça. Entretanto, a fila só inverte mesmo a partir dos 10 anos completos, quando passam a ter mais crianças do que pretendentes.
Segundo as estatísticas do SNA, na data da elaboração deste artigo (julho/2022), das mais de 30 mil em situação de acolhimento, há 4.102 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, sendo a maioria delas residente aqui no Sudeste (1.867) e, destas, a maioria no Estado de São Paulo (966). As demais estão em processo de retorno à família biológica, preservando-se os vínculos de origem daquela criança. Agora, dos infantes disponíveis para adoção, grande parte possui 08 anos ou mais e, por isso, comumente escutamos que a conta não fecha: por que temos 32.901 pretendentes e 4.102 crianças para adoção?
Se formos olhar para todos os critérios indexados pelo Conselho Nacional de Justiça, tais como etnia, gênero, deficiência, doenças em geral e doença infectocontagiosa, enxergaríamos um cenário promissor, porque, quando analisados isoladamente, temos mais pessoas querendo adotar do que crianças disponíveis para adoção. No entanto, quando estes critérios são analisados em conjunto, as dificuldades aparecem e, para grupos de irmãos com mais de 3 crianças, para crianças com idade acima de 10 anos e para adolescentes, a conta realmente nunca vai fechar.
Buscando quebrar estereótipos em relação à adoção ‘tardia’, alguns Tribunais brasileiros vêm desenvolvendo projetos para trazer visibilidade às crianças e adolescentes disponíveis para adoção nos sistemas de acolhimento institucional e familiar, a fim de que a sociedade possa aprimorar, justamente com empatia, informação e respeito, sua visão a respeito do tema.
A título exemplificativo, citamos o projeto “Adote um Boa Noite”, desenvolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e o “O ideal é real”, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Sobre o projeto carioca, tanto o juiz da Infância Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, quanto a advogada Silvana do Monte Moreira, ressaltam sua importância, já que os pretendentes à adoção comumente trazer uma imagem da criança idealizada, o que é esperado, normal e até mesmo natural, sendo necessário um movimento do Sistema de Justiça, com acolhimento de todos os envolvidos, para mostrar a criança real, ou seja, a criança que está ali no abrigo aguardando uma família e não a criança idealizada pelo pretendente.
Assim, considerando que a mudança do perfil da família ou da pessoa que busca a adoção como meio de paternidade e/ou maternidade no SNA pode ocorrer a qualquer tempo, precisa ser superado o preconceito a respeito da adoção ‘tardia’ para favorecer e garantir a tantas crianças e adolescentes o direito à convivência familiar e comunitária, como está no ECA, e sobretudo o direito de ser amado, cuidado e respeitado, especialmente por sua condição especial de sujeito em desenvolvimento, que merece atenção prioritária por parte do Estado, da família e da sociedade em geral.
Nesse sentido, foi instituída oficialmente pela Portaria n. 114/2022 do CNJ, o procedimento de “busca ativa”, que visa promover encontros entre pretendentes e crianças e adolescentes aptos à adoção, os quais já tiveram todas as possibilidades de inserção em uma família esgotadas, tanto nacional como internacionalmente, com base em estudos psicossociais prévios elaborados na Vara da Infância.
Por meio deste sistema, pretendentes poderão ter acesso ao nome da criança, sua idade, seu Estado, uma fotografia e mesmo um vídeo curto com um depoimento pessoal, o que será preferencialmente gravado pelas próprias crianças e adolescentes, com suas palavras, ou pelo abrigo, sendo adotados meios de segurança e proteção destes infantes, inclusive através de compromisso de sigilo por parte dos habilitados no SNA, sempre em atenção ao melhor interesse infanto-juvenil.
Assim, ainda que lentamente, a Justiça caminha em prol da prioridade absoluta e da proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes ao buscar meios para desenvolver campanhas de visibilidade e estímulo à adoção de crianças mais velhas e adolescentes em situação longeva de acolhimento, assim como de crianças e adolescentes com deficiência e/ou inseridos em grupos de irmãos.
Esperamos ter contribuído com alguns esclarecimentos a respeito do tema da adoção ‘tardia’. Se você se interessou e quer mais informações, a ANGAAD, Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção, pode ser um bom caminho para iniciar sua preparação e trajetória. Se você está habilitado e quer alterar seu perfil no SNA, é possível procurar diretamente a Vara da Infância e Juventude mais próxima da sua residência. 😊
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